quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Dona Peta - Conto Minha Vida





DONA PETA - CONTO MINHA VIDA


Dona Peta, em meio a uma entrevista solicitada pelo jornal Correio da Manhã, “abriu as torneiras” da memória e desatou a contar toda a sua vida. Deixei de lado as perguntas e, pela noite dentro, só tive o trabalho de fazer-lhe café e trocar as bobines do gravador para não perder nenhuma das muitas histórias que, ora transcrevo para este livro.


“Fenêtre sans vue sur vie délaissée
Où le nèant même s’est effacé”

Monique Andréa Jullien



DONA PETA - ...tem piada... a “cachola” da gente. Não sou capaz de lembrar-me do que comi ontem ao pequeno almoço, mas lembro-me de coisas de quando era bem pequenina. Coisas de que há muito não lembrava e outras até que nunca tinha dado por mim... umas só sonhava-as e, agora, com esta brincadeira de ficar lembrando o passado para responder a essas perguntas todas, vejo bem que não eram só sonhos... a cabeça! Vi mesmo uma cabeça separada do corpo na linha do comboio. Quantos anos eu deveria ter!? Devia ser muito criança. Vejo o pai e a mãe de zangas e sei que é por minha causa. Vai ver, por ter ido brincar nos carris. Estou-me a lembrar do velho... uma sala muito grande... o velho a bolinar-me...um dedo muito grosso na minha virilha... o pai e a mãe de zangas comigo... sei que gostava de ir para a sala, brincar com o velho. Outra coisa que gostava, era das mudanças mas faço confusão... foram tantas... sei que gostava... acho que sou mesmo Cigana. Mas comecei mesmo a entender-me como gente quando comecei a aprender a ler e a escrever. Disso, lembro-me bem. A mãe ensinava-nos. A mim e ao pai. Ela parecia mesmo uma professora... severa que ela era. E o pai, nessas horas, parecia criança. Brigávamos muito, mas aprendíamos. Eu aprendia mais rapidamente que ele. As contas ele aprendia com mais facilidade. Depois, no jardim, ele ensinava-me o que aprendia com a mãe. Duas margaridas mais uma margarida, três margaridas... e eu adorava mexer na terra. Depois, vieram as escolas... professoras de verdade... com cara-feia, reguadas, castigos. Lembro-me de ter entrado já no terceiro ano, pois já sabia ler, escrever e fazer as quatro operações. Isso, já em Lisboa, em 1938. A mãe, nessa altura, trabalhava numa casa e o pai noutra. A gente via-se nos fins-de-semana. Depois, a mãe foi trabalhar noutro sítio e não tinha vaga na sala do terceiro ano. Tive que entrar no segundo na nova escola. Troquei muito de escolas... até que o pai e a mãe foram trabalhar numa quinta nos arredores de Lisboa. Eu andava pra aí uma hora para chegar à escola. E foi nessa escola que eu tomei conhecimento da minha história. Vou contar como foi. Eu menstruei. E eu só tinha dez anos. Foi na sala de aula.(Ri) Foi meu primeiro castigo por ser mulher. A professora pôs-me fora da sala. Fiquei de pé na sala da directora que havia mandado chamar a minha mãe... eu, ali, de pé. Morta de medo. O sangue a escorrer pelas pernas abaixo. A mãe chegou muito nervosa pois não sabia o que tinha acontecido comigo e imaginava algum acidente grave... se bem que, pra directora, era grave. A mãe então, contou à directora a minha história. Que eu tinha, na verdade, mais de dez anos. Que eu era pequena assim porque tive uma doença... e eu, a ouvir tudo isso pela primeira vez... que eu não era filha dela... Depois disso, eu ouvi mais vezes a história. Vou contar... Ah! Aí, a directora não deixou mais que eu frequentasse a sala. A professora dava-me explicações e eu só ia à sala para fazer as provas. E assim, terminei a primária. Bem, a minha história, até aí e que eu não sabia... Mané, faz-me um café, sim? Qual era mesmo a última pergunta que fizeste-me?
MANÉ DO CAFÉ - Esquece isso. Fale pr’aí à vontade.
DP - Espero o café. Bem, os meus pais trabalhavam há muito tempo para um casal, na linha de Cascais. Gente muito rica. O casal não tinha filhos. A mãe era a governanta e o pai, o jardineiro e fazia outras tarefas de manutenção da casa. Uma casa muito grande, uma vivenda, um palacete! Certo dia, contou a mãe, um casal que vinha de algures no Norte, bateu à porta pedindo trabalho. O casal trazia uma criança, que era eu. Eu tinha sido deixada à porta desse casal e, como tinha um acampamento de Ciganos perto dessa tal terra deles, lá no Norte, faz-se ideia de que eu seja Cigana. Parece que não é costume... mas vai-se lá saber! Trabalho não havia mas, os velhos, donos da casa, aceitaram ficar comigo e criarem-me como filha deles. Já pensaste!? Hoje eu estava bem. Com uma casa daquelas! Ah! Aí, a história era outra. A mulher do dono da casa morreu e o velho ficou muito desgostoso e deu-me pra minha mãe e aí, é como eu digo que a única coisa boa que eu fiz na vida foi unir o pai e a mãe. Pois, não é que o maroto do jardineiro já há muito vivia de olho na governanta?! Aproveitou a oportunidade e, naquela conversa de “vais criar a miúda sozinha”, casaram-se. Era o ano de 1932. Registaram-me como filha deles. E, olha, foram muito felizes. Pelo menos o tempo em que eu vivi com eles. Foram, sim! Mas, Mané, voltemos à chatice das perguntas lá pró jornal. Aproveita que hoje estou para aturar-te.
MC - Não se preocupe. Vai falando. Depois eu dou um jeitinho...[1]
DP - Devias dar um jeito era de fazer um café melhor.
MC - No próximo eu capricho. Conta lá, vai.
DP - Queres que eu fale em Português ou “Brasileiro”? (Ri) Quando eu estava na cadeia, conversava muito com uma nordestina. Ela dizia (Imita) “Vôte, sá minina!” Então, fui registada como filha deles e tratada como tal.
O velho, dono da casa, ficou tetéu com a morte da esposa e estava cada vez pior. Foi quando o pai e a mãe largaram o velho sozinho e foram procurar outros trabalhos, até que viemos dar na tal quinta onde eu terminei a primária e a minha vida começou de verdade. De verdade, é como quem diz, eu estava ciente das mentiras que a vida pregava-me. Porque, na verdade, a vida me foi uma grande mentira. Uma “granda” peta.
Com o início da carreira da camioneta que ligava a quinta que nós morávamos a Lisboa, eu pude começar a frequentar o liceu. Tudo ia bem até que entrou o primeiro homem na minha vida. Caixeiro-viajante. Conheci-o na camioneta, indo pró liceu. Namorávamos na camioneta. Ora de casa pró liceu, ora do liceu pra casa. Casámo-nos (...)[2] e nunca mais voltei nem ao liceu, nem à casa. Fomos morar para o Porto. (...) Ele ficou desempregado e escreveu para o Brasil. Ele tinha dois irmãos que tinham negócios no Rio de Janeiro. Eu sentia saudades de casa, mas era difícil fazer uma visita. Todo dinheiro que ele fazia, guardava para a viagem. Os irmãos escreveram com oferta de ajuda. Podíamos ir para lá, porque eles estavam bem estabelecidos. Escrevi uma carta de despedida para meus pais e fomos, como tantos, para o Brasil. Ah! Da viagem, o que ficou foi a impressão do azul. Era azul para todo lado que se olhasse. Acreditas que nem sequer tive enjôos? Mas esse azul ficou-se pela viagem. A ajuda. O cunhado mais velho tinha um restaurante... lá fui eu pró branco fumacento da cozinha. O cunhado mais novo estava a iniciar um ferro-velho e pôs o irmão para fazer a tarefa que ele fazia que era a de recolher garrafas e metais pela freguesia. Era o “Burro-sem-rabo”, como eram chamados os garrafeiros. Mas, Puxar um carrinho cheio de quinquilharias, era tarefa pesada demais pra um caixeiro-viajante que só sabia levar bem a vida era na conversa. Na lábia. Desiludido, começou a beber, até que o irmão o dispensou e entregou o carrinho a um primo que viera de Trás-os-Montes. Eu fiquei sustentando a casa ainda na cozinha do irmão mais velho. Vivia muito nervosa. Ele, bebendo o dia inteiro. Comecei a engordar. Engordar sem parar. Mas não comia, não. Pelo contrário, quase não tinha apetite. Depois, já na cadeia, que vim a saber porque que engordava. Era dos nervos. Quanto mais raiva ele me fazia, mais eu engordava. Um dia, por dá-cá-aquela-palha, ele deu-me uma estalada. Não sei bem o que senti, na altura. Mas, de outra vez que ele ameaçou-me, não bateu, mas ameaçou, eu senti muito medo. Por fim, já sentia medo de ir para casa e encontrá-lo embriagado. Ai, que pecado... não posso contar minha história sem falar nela. A mulher do irmão mais velho. Teresa! Olha, até o nome dela saiu.
MC - Dona Peta, esteja à vontade. Eu nem sei bem o que vou fazer com esse seu relato. Você fala tudo que lhe der na “telha”. Depois, se quiser, você corta. Não vou tornar público nada sem a sua autorização.
DP - Agora, perdi-me.
MC - Estava a falar do medo que tinha do marido quando lembrou-se da concunhada. A Teresa.
DP - Ah, sim! Vou falar dela. Afinal, ele estava só para infernizar-me a vida. Arranjava um trabalho aqui, outro ali e sempre um botequim entre os dois. A Teresa é que é. Já deve estar morta e que Deus a tenha se assim for. Ela tinha uma doença ruim e vivia em tratamento. E o tratamento deixou-a sem um pelo no corpo todo. Muito magra e careca. Nem as sobrancelhas tinha ela. Mas era das pessoas mais bonitas que conheci. Não só pela alma boa. Quem a via na rua ou em qualquer outro sítio, de peruca e bem vestida, não dizia que era doente. Sempre de bom humor e disposta a ajudar os outros. E ajudou-me muito. Primeiro, na cozinha do marido. Eu já não estava dando conta do serviço. Às vezes, tinha tonturas. E muito gorda. Bem, fui dispensada do trabalho. A Teresa continuou a ajudar-me, mesmo contra a vontade do marido que não via com bons olhos nossa amizade. Ele culpava-me pelos infortúnios do irmão e, forreta como ele só, não queria que a mulher tirasse dinheiro da caixa para me dar. Por outro lado o meu marido também não queria saber de minha amizade com ela. Estava zangado com os irmãos. Não queria nem que ela nos ajudasse. Não queria esmolas, dizia ele. Ele continuava a viver de expedientes. Já não bebia tanto. Também, já não precisava da bebida para tornar-se violento. A Teresa foi hospitalizada. Eu fui visitá-la e, por causa disso, o homem ficou valente. Agrediu-me e proibiu-me de visita-la novamente. Pois, como o castigo vem à cavalo. Ele foi preso. Estava a vender bilhetes no mercado-negro para a final da Copa do Mundo. Pegou uma vadiagem. Três meses dentro. Não fui visitá-lo um dia sequer mas, sempre que podia ia ter com a amiga. Quando ele saiu, deu-me tanta porrada que fui pró hospital. Agora, vê pra onde fui parar. Isso mesmo. Na mesma ala. O hospital estava em obras e, na arrumação, acabamos por ficar na mesma ala da amiga. Aí, além de uma amiga, passei a ter também uma confidente. Foi uma semana que ficamos juntas. Uma semana que abriu minha cabeça para toda a vida. Eram palavras de quem, apesar da pouca idade e de saber ter os dias contados, já tinha o conhecimento de que não há bem maior que a vida. Afinal, todos temos os dias contados. Só não sabemos as contas. Uma semana que iria transformar-me numa nova mulher. Resolvida a lutar pela minha liberdade. Uns dois anos... uns dois anos agarrada àquela coisa cá dentro até que tive coragem. Um dia, cheguei a casa e disse pra ele: “Não te quero mais na minha vida. Na minha casa. Vai-te embora!” Levei um murro que caí sentada. Ele foi dormir sem dizer uma palavra. Eu, lá, sentada no chão da sala, de olho pregado na porta. Quando levantei, já fui directo à porta e... rua! Andei, andei como uma desvairada. Não pensava em nada. Andava e andava. Dois dias depois, senti que alguém puxava-me pelo braço e, só em casa é que percebi que era ele. E ele dizia: ”Queres virar puta? Não achas que já desgraçaste-me a vida o bastante? Arrebento-te!” Adormeci com aquelas palavras a estoirar na minha cabeça. Um sentimento de impotência tomou conta de mim. De fraqueza. Afinal, eu nunca quisera lutar por nada e quando resolvo, vejo que não tenho forças nem armas para tal. Mas, lá dentro, estava o desejo instalado. Era só questão de esperar. Ele, por outro lado, estava mais forte. Nessa altura, era ele quem mantinha a casa e não lhe faltava dinheiro. Passou a fazer parte dum gangue através de amizades que fez quando estava na cadeia. Posava de bom moço. Fez as pazes com os irmãos. Bom marido. Dizia prós irmãos que apesar da mulher que tinha que não lhe ajudava em nada, que só dava prejuízos, ainda assim, ele logo estaria com seu estabelecimento próprio. De facto, ele estava mudado. Bebia de vez em quando e... tem imensa piada...que só então eu fui descobrir que gostava de... de ter relações... Eu continuava a engordar mas já não tinha as tonturas. Ainda que bem lá dentro eu pensasse em dar o fora, não via alternativa e então procurava tirar proveito de alguma coisa boa e a única coisa boa era quando ele chegava bêbado e procurava-me. Que ironia. Antes, tinha medo dele embriagado e, nessa altura, já torcia para ele chegar bêbado. Enquanto seus negócios escusos iam bem, ele tratava-me melhor. Penso que era com medo de eu comentar com os irmãos pois eu sabia das suas ligações. Algumas vezes o gangue reunia-se lá em casa. Mas, na altura, o facto dele tratar-me bem, assustou-me. Mais ainda quando percebi que estava a gostar da vida que estava a levar e até me aborrecia quando ele ficava muito tempo sem me procurar. Procurei a amiga Teresa que, como eu, percebeu que a situação estava mais perigosa que nunca. Ela deu-me um dinheiro e eu fugi. Fui para Petrópolis. Aluguei um quarto e peguei o primeiro emprego que apareceu. Empregada de mesa num café. (...) Foi giro, porque a casa nem precisava de mais uma garçonete mas a que tinha era uma rapariga alta e muito esguia, aí o patrão achou piada. Seria o Gordo e o Magro... o Bucha e Estica de saias. Uma magra e alta, outra baixa e gorda. Digo mais, a freguesia aumentou. E as gorjetas!?... Coisa boa. Trabalhava. Meu dinheirinho. Nas folgas, ia pra quinta dos avós da colega. Do Magro. Banhos de cachoeira. Claro que aquilo que já achava bom, não tinha. Se bem, que havia um cliente que andava a se fazer a mim... Mas o que é bom, dura pouco. Não é que um dos cumpinchas do maldito tinha ido a Petrópolis tratar de negócios do gangue que envolvia cavalos. Negócios! Roubar cavalos, isto sim! Viu-me. No outro dia, lá estava ele. Ameaçou-me de morte. Adeus aos três meses de sossego. Mas, bem feita! Foi justamente os “negócios” com cavalos que o pôs mal com a quadrilha. Ele estava a trabalhar com o irmão mais velho, no restaurante. Entretanto, estava novamente agarrado à bebida. O irmão não aguentou os desfalques na caixa e a preocupação com as amizades dele. Mandou-o embora. Briga feia. Sobrou para mim, claro. Aí, tive a primeira ideia maluca. Já tinha sabido de caso igual no jornais. Chumbo derretido no ouvido. Meu Deus, porra! Arrepio-me só de lembrar. Tinha uma casa abandonada no quarteirão e os putos iam lá para tirar a encanação para vender no ferro-velho. Vê só. Pois eu não me apanhei a imaginar. Eu ir de madrugada, escavacar a parede, tirar um pedaço de chumbo. Por na panela para derreter. Ele a dormir... não tive coragem. Mais tarde cheguei a tentar. Depois eu conto porque, antes disso teve a nossa fuga para Argentina e não quero perder o fio da meada. As coisas ficaram feias pró lado dele. Outros membros do gangue queriam sua cabeça inclusive, gente da polícia. Um dia, ele apareceu com documentos falsos para mim e para ele. Fomos para Buenos Aires. Uma semana. Sem por a cara fora do hotel. Nunca percebi direito o que aconteceu. Sei que o negócio dos cavalos mexeu com um figurão. Mais não sei. Como arranjou dinheiro e documentos se já não tinha mais ligação com os bandidos?! Sei que o susto foi grande e com a quadrilha desmantelada, regressamos ao Rio. Ele passa a trabalhar em pequenas tarefas até que resolveu tomar vergonha na cara. Mudar de vida. Isso era o quê... 55. Foi o ano que a Teresa voltou à Terra a tratamento... Ele fez inscrição para trabalhar na construção de Brasília. Enquanto aguardava ser chamado, ele fazia biscates. Os irmãos não queriam vê-lo nem pintado de ouro. Mudar de vida? Ficou pela intenção. Tome bebida, tome porrada. Um dia , ele chegou em casa com uma corrente e um cadeado a dizer que desse jeito ele não aguentava mais. Trabalho só pra engordar-te, disse ele. Trancou a despensa. Foi aí que tive novamente a ideia maluca. Veneno no café. Ele gostava de deixar o café esfriar e tomar de um só gole. Só que, nesse dia, ele saiu à pressa para ver a nova lista dos convocados para a construção da capital e não tomou o café. Até hoje, penso se eu teria coragem de deixá-lo beber. Não tentei mais. Certa vez, ele ficou dois dias fora. Eu não tinha muito apetite mas, dois dias sem comer, era muito. Sozinha. A Teresa, para Portugal. Não tinha lata pra recorrer a vizinhança... Peguei na corrente da despensa e dei um puxão. Foi só o peso do braço. Veio tudo abaixo. Corrente, porta, cadeado. Porra, eu já ia nos cento e cinquenta quilos. Fiquei a olhar pra minhas mãos, tão pequenas e fez um estrago tamanho. Senti uma coisa estranha dentro de mim. Veio-me a cabeça a semana que estive com a amiga no hospital. Tirei um bom naco de carne-seca, fiz um refogado com abóbora e comi com o maior prazer. Na primeira investida que ele fez contra mim, dei-lhe um solavanco. Ele partiu a espinha.
Fiquei livre. Claro que tive que pagar o preço da liberdade. Paguei cinco anos de prisão. O advogado ia alegar legítima defesa mas, sem testemunhas... a Teresa longe. Os irmãos contra mim... até puseram uma nota no jornal, à maneira deles, claro. Restava ao advogado acidente culposo, mas eu mesma estraguei tudo porque eu disse que tinha sido acidente mas que eu estava satisfeita da Silva por compensar as duas vezes que pensei matar o desgraçado e não consegui. O Juiz deu-me com uma martelada de cinco anos. Mais, por desrespeito à Justiça. Justiça deles. Dos homens. Mané, agora que vem a parte boa, vamos a um café?
MC - Tá Bem. Agora vai sair bem feito. Espera aí, parte boa? A da prisão?
DP - Sim. Foi lá que comecei a sentir-me pessoa. Assim capaz de fazer alguma coisa. Alguma coisa que fosse minha que, de certa forma, tivesse um pouco de mim na coisa feita.
MC - Os desenhos...
DP - E não só. Em tudo. Até nas minhas relações com as pessoas. Passei a dar-me mais nas coisas que fazia. A compreender mais as pessoas e as coisas da vida. Ah! Sei lá, vai fazer o café é que é.
MC - Mas, vai falando enquanto passo o café. Está gravando.
DP - Eu não. Já estou a falar coisas que eu mesma não percebo.
MC - Arte, Dona Peta. Você é uma artista.
DP - Arte, o caraças. Quero ver arte mas é de fazer um bom café.
MC - Tá bem!
DP - Sabes, Mané, eu nunca te falei disto. Mas a primeira coisa que fez com que eu te desse atenção foi o facto de te apresentares como Mané do Café. Eu tenho uma ligação muito forte com café. Tenho até um desenho que fiz em 70. Foi durante a Copa do Mundo. Era Brasil pra cá, Brasil pra lá. E só me dava era saudade. Não do Brasil, mas do café, ou melhor, do cheirinho do café que eu tomava na roça dos avós da colega lá de Petrópolis. O café da serra tinha cheiro de liberdade. Nunca mais tomei um café tão cheiroso como aquele. Aí, tu chegaste a minha porta e perguntaste se a cómoda que estava fora era minha. E eu até fui ríspida contigo, lembra? “Já deitei fora, não quero mais aquela porcaria!” E tu, especado, com o meu desenho na mão. “Não, eu só queria saber quem fez isso!” Como foi? Arranquei-te o papel da mão e nem agradeci. Cheguei a bater a porta? Não. Fiquei a olhar pró desenho. Fora o meu primeiro desenho. E tu, parado. Aí, tu disseste. “Eu sou o Mané do Café. ”Foi a palavra mágica que espoletou isso tudo que...
MC - Me desculpe, Dona Peta. Mas, mais mágica foi a palavra ‘França’.
DP - Mas isso, foi depois.
MC - Tá. Vamos voltar à prisão, então?
DP - Espera. Naquele dia tu falaste, falaste, mas eu não percebi direito ainda como foi que o desenho foi parar na tua mão.
MC - Pois não estava grudado no fundo da gaveta? Quando tirei a gaveta, lá estava ele com uma barata esmagada.
DP - Sim. Mas por quê foste pegar um móvel daqueles, já todo comido pela traças.
MC - Ah! Dona Peta, eu gosto de pegar umas coisas no lixo. Eu e a Mira pegamos esse gosto quando moramos na Suíça. O lixo lá é uma beleza. Também porque gosto da ideia de coisas que serviram a uns, servirem a outros. Se bem que aquela já não servia nem pra lenha. Eu andava a procura de uma mesinha pra minha filha Ariane fazer os trabalhos de casa. Ela tinha acabado de entrar pra escola...
DP - Por quê falaste na França. Que França foi a palavra...
MC - Ué! Dona Peta. Não lembra que quando eu estava argumentando pra fazer a senhora autorizar a gente usar os seus desenhos pra uma exposição, a senhora sempre dizendo não, não. Eu dizia que a senhora podia até ganhar dinheiro e a senhor, não. Até que falei que podia conseguir organizar uma exposição na França aí, a senhora concordou? Não lembra, não? Daí, a palavra mágica ter sido...
DP - Bola! Senhor Mané. Bola! Senhor Jorge Carlos Amaral... como é que é mesmo... Amaral de Oliveira. Bola. A palavra mágica foi ‘Bola’. E o senhor não se lembra sabe por quê? Porque não cumpriste com o prometido![3]
MC - Tá bem, Dona Peta. Não vamos brigar, não, tá Bem? Vai haver outra. A Monique diz que vai organizar outra exposição em Avignon.
DP - De que estás a rir?
MC - Estou lembrando de quando a senhora disse que o segundo marido lia “A Bola” todos os dias, mesmo que estivesse na prisa ou no hospital. E eu perguntei: “E se ele estiver morto?”. Aí, você...
DP - É mesmo! Ele lê “A Bola” até no Inferno que é pra lá que ele vai. Se bem, que ele é tão ruim que acho que nem o Diabo o quer. Esse café está melhor. Muito bom. Onde é que a gente estava mesmo?
MC - A gente, não. Você. Estava na cadeia. E careca, não era?
DP - Pois, já te contei... por causa dos piolhos. Ou era só pra humilhar. Só as recém-chegadas é que tinham a cabeça rapada. (...) Pois é, feliz como eu estava, sentia-me disposta a suportar tudo de ruim que pudesse acontecer comigo. Qual o quê!? Tive foi muita sorte. Fui logo tendo bom relacionamento com todo o pessoal. A princípio, puseram-me a trabalhar na lavanderia, mas as tonturas voltaram e iniciei um tratamento que exigia muito repouso e lá uns comprimidos. Passava o tempo a conversar. Tinha a tal nordestina que falava muito. Tão gira que era ela. Puseram-me a alcunha de “Adamastor”. Chateei-me pois relacionava com o monstro mas vi que era por causa do navio português e não liguei mais. Se bem, que tinha um pouco a ver com a gordura, mas aceitei bem. Havia muita fofoca. Às vezes algumas turras. Algo assim como viver na Mouraria. Teria sido muito aborrecido não fosse eu ter feito amizade com a Marina. Que mulher! Aí, sim! Posso dizer que tudo que está acontecendo agora comigo, foi graças ao meu relacionamento com ela. Ela ocupava o tempo a desenhar e a pintar. Cada coisa linda fazia ela. Uma artista mesmo. Era professora primária e também tinha matado o marido. Vinte anos. Ah! Mas tenho que contar sua história. Contou ela que o marido batia-lhe muito. Um dia, foram parar na esquadra. O marido ficou detido até se acalmar e um soldado foi levá-la a casa. Acontece que esse soldado passou a fazer-se a ela. Ela não lhe ligava a mínima. Até o detestava. Ele sempre passava por sua casa. Saber como andavam as coisas. Sempre prestimoso. Até que um dia, ela decidiu-se. Vê só. Foi para a cama com o soldado, surrupiou-lhe a arma e foi pra casa esperar o marido. Quando o marido chegou, recebeu-o com quatro tiros. Ficou ali, a espera do soldado quando ele viesse reclamar a arma, com as balas restantes para ele. Mas o soldado não apareceu, claro. Vinte anos! Mas ela era de uma paz. Sempre solícita. E todo tempo a pintar. Ah! E ela disse-me quando contou sua história que, ele, o marido, tinha metade das culpas por isso, só teria de pagar metade da pena. Na altura, não percebi o que ela quis dizer com isso. Eu só disse que achava que toda mulher que mata o marido, mata em legítima defesa e rimo-nos muito. A amiga Teresa regressou de Portugal e foi visitar-me. Levou-me muitas revistas e livros e coisas que ela tinha trazido da terra. Aí, como eu não conseguia fixar-me na leitura por causa dos comprimidos, pedi uns lápis à Marina. Ela deu-me dois que ela pouco usava. O Maravilha como ela dizia e o Azul Marinho. Então, peguei as revistas e livros e comecei a colorir as figuras. Depois fiz um gato. O corredor vivia cheio de gatos. As mulheres deitavam a comida para o corredor e os gatos vadios vinham comer. E tinha um gato gordo que parecia gostar muito de mim. Comia e ficava ali, deitado, a olhar para mim. Pois Não é que achei parecido com o gato que desenhei. Aí, fiz a minha cara. Levei para a amiga Marina ver. Ela desatou a rir. Perguntei-lhe por que riu e ela disse “O cabelo”. Ri também. Peguei um pedaço de papel com ela e fiz o primeiro desenho com sentimento mesmo. Sabes, não era como o que via, era como o que sentia. Mostrei-o à Marina e ela disse: “Isso é você, mas não é só você . É também sua vida. A que tem, a que teve e a que gostaria de ter. Vou pintar você um dia destes”. Até hoje não entendi o que ela disse. Sei que não consigo desenhar outra coisa e olha que ela ensinava-me. Aprendi com ela uma porção de coisas de desenho. Mas não tinha piada nenhuma quando eu fazia os desenhos que ela mandava para exercício. E um dia ela chamou-me e mostrou-me um desenho que nunca mais esqueci. Era um pássaro com muito amarelo e vermelho. A voar. Como se fosse de fogo. Um pássaro de fogo a voar. E ela disse “Este é você, como eu lhe vejo. Pena ser a lápis. Gostaria de ter feito a óleo aí você ia ver que bonito”. Achei que era maluquice dela mas que o pássaro de fogo era bonito, isso era. E gostei muito de saber que a amiga via-me assim. Passei o resto do meu primeiro ano assim. Tudo o que eu sentia, fazia um desenho. Se estava triste, alegre, se acontecia alguma coisa que me marcava muito. O tempo passava que nem reparava. Na véspera da Nordestina sair. Foi logo no ano seguinte. 58. Eu estava a ouvir as fofocas. De repente, o assunto pendeu pró meu lado. Ela, a nordestina, dizia que o sargento Amândio estava de olhinhos pró Adamastor. Uma perguntou o que ele via nela, gorda daquele jeito e a Nordestina disse: “É a boca pequena. Vocês não sabem que quem tem a boca pequena é sinal que o ‘priquito’ é pequeno?” Vejam, só! Eu mesma nunca tinha reparado que tinha boca pequena. Fiz um desenho e fui mostrá-lo à Marina. Cheguei a sua cela e encontrei o pessoal retirando suas coisas. Ela tinha-se matado. Foi então que percebi o que ela quis dizer quando contou-me sua história. Fazia, naquele dia, dez anos que ela estava presa. Metade da pena! Foi duro ver as pessoas a pegar nas suas coisas e deitar para dentro de um saco, de qualquer jeito. Seus desenhos. O Pássaro de Fogo amassado e empurrado pró fundo de um saco de lona. Guardei o desenho da boca pequena, os lápis e resolvi não desenhar mais. Fiquei numa tristeza... Sentia-me culpada por ser tão burra. De não ligar uma coisa a outra. Eu sabia que ela ia fazer dez anos naquele dia. Na despedida da Nordestina, ela comentou isso. Meu Deus, porra! Era como se eu própria a tivesse morta. Quase não comia. A comida ia toda para o corredor. Prós gatos. E o gato gordo lá se deixava ficar frente a cela a olhar pra mim. Um dia. Coisa estranha. Eu estava sentada e, de repente, vi-me através das grades. Era como se eu estivesse a olhar com os olhos do gato. Levei um susto! Mas fiz isso muitas vezes e ia pra onde ia o gato. Andava por cima dos telhados. Via o mundo lá fora. Fiz tanto isso até que pensei que podia estar a ficar louca e parei com a brincadeira. Mais um ano tinha-se passado e resolvi voltar prós desenhos. A Teresa levou-me uma caixa de lápis de cor, mas eu continuava a desenhar com o maravilha e o azul marinho. E o desenho era sempre o mesmo. A mulher careca - Eu já estava com os meus anéis, novamente - O gato. Aquela janela enorme. Vazia. Foi então que dei pela falta do gato gordo. ”Sargento Amândio, nunca mais vi aquele gato gordo.” E o sargento deu uma grande gargalhada e, meio sem jeito, como que a desculpar-se, explicou: “Foi o praça Quinzinho. Você não notou que o som do seu tamborim está melhor? Pois é, Carnaval tá chegando e ele está de couro novo.” Levei um choque! Mas não fiquei com raiva do praça Quinzinho. Nesse instante, vi, claramente, que as pessoas não são só boas ou más. Vou-te contar. Se há uma pessoa que eu podia chamar de artista, era o praça Quinzinho. Um soldado antigo, pretinho, pretinho. Tocava tamborim numa escola de samba. E quando estava de plantão, era a noite inteira. O tamborim soava como um piano. Às vezes, triste que era de partir o coração. Às vezes, alegre que dava vontade de dançar. Quantas vezes adormeci ao som do tamborim do praça Quinzinho. Tempos depois vim a saber que ele comia o gato enquanto preparava o couro. Como se fosse um ritual. Ele e o instrumento eram um só. Nada mudou a partir daí. Continuei a dormir acalentada por seu tamborim. Só que quando isso acontecia, o gato gordo tomava conta dos meus sonhos. Percebes? Eu não sonhava com o gato, sonhava coisas do gato. Eu, heim!... O tratamento médico estava a dar resultados. Comecei a emagrecer a olhos vistos. Até me assustei. Já não tenho muito mais para contar da prisão. Que seja interessante, não. Continuei a fazer os meus desenhos e, mesmo eu já magra, os desenhos continuavam os mesmos. Vai-se lá saber porquê! Sei que se alguma coisa acontecesse na minha vida e eu não fizesse um desenho, era como se a coisa não tivesse acontecido. Exemplo disso é esse desenho que te dei. Quando tive o aviso de que ia ser solta no dia seguinte. Pensei: “E agora!?” “Como é que vai ser !?” Fui direito a amiga Teresa. Nessa altura, o marido já lhe fazia todas as vontades. Divertimo-nos à brava. Fomos ao cinema, teatro, um passeio na Quinta da Boa Vista. Comprou-me roupas. Tiramos fotografias. Aquela foto que eu tenho na cabeceira da cama. Eu era bonita, não era?
MC - Ah, Dona Peta! Desculpe interromper... mas antes que me esqueça... Trouxe uma coisa pra lhe mostrar. Olha só esta foto.
DP - Puta que pariu, Mané! Quem é essa? É a minha cara chapada, quando eu era nova! Quem é?
MC - É uma amiga. Kikha Danthas. Uma grande actriz.
DP - O nariz então é tal e qual. Nunca vi uma coisa dessas. Chega faz impressão. De onde é ela?
MC - É brasileira. Podia-se dizer que é sua irmã.
DP - Pode-se dizer até que sou eu.
MC - Vou mandar uma cópia da sua foto pra ela...
DP - Não senhor. Não te vou deixar sair por aí com fotografia minha. Essa não, senhor Mané. Mas que estou impressionada, lá isso estou, Mané. Mané. Sabes, Mané, às vezes quero tratar-te pelo teu nome mas não consigo. Já me acostumei com o Mané.
MC - Eu também já acostumei chamar-lhe Dona Peta. Menina (...)[4] já não me soa bem.
PD - Pudera. Tu próprio inventaste este nome. Dona Peta. Veio mesmo a calhar. Mas acho que vou passar a chamar-te Café.
MC - Ih! Não sei, não!
DP - Café!
MC - Já vou fazer.
DP - Vai fazendo e eu vou falando. Indo, endo e ando...
MC - É Gerúndio, Dona Peta.
DP - Eu sei. Não sou assim tão ignorante. Tu sabes, Mané que só quem usa o gerúndio são os brasileiros e os alentejanos? Tem até aquela anedota do Alentejano. Como é? Diz que isso não é pra se fazer, isso é pra se ir fazendo. Coitados. Mexem tanto com os alentejanos e é um povo tão sofrido. Não sei. Há tanto preconceito nesse mundo. Eu cá não tenho nada disso. Acho que é por não saber a minha origem. Vê lá, posso ser filha de preto, não posso? De onde veio esse nariz? Posso mesmo ser cigana. Quase certo. Outra coisa que não passo cartão é o tal de Horóscopo. Como não sei quando nasci... Às vezes eu faço assim. Abro o jornal e penso, faz de conta que sou Sagitário e leio. Outra vez, hoje sou Capricórnio. Bate sempre certo. É tudo uma grande treta!... Bem voltemos ao Rio de Janeiro!
MC - Gostava de lá voltar?
DP - Sim. Mas gostava mesmo é de conhecer a Amazónia. Tu falas-me tanto de lá que já me imagino a passear por aqueles rios. Também gostava de ir ao Pantanal, mas por causa da novela. Mas, pelo que tu falas, penso que a Amazónia seja ainda mais bonita. Já sei, Mané. Quando começar a vender meus quadros, assim que o dinheiro der, eu vou conhecer a Amazónia. Se der, pago tua passagem. Se não, vou sozinha.
MC - Tem a “manha”?
DP - Como?!
MC - Desculpa. Pergunto se tem o jeito... disposição pra fazer uma viagem dessas, sozinha.
DP - Se tenho! Tu não me conheces.
MC - E aquela história do dedo quebrado?[5]
DP - Isso, é para andar. Aventura é outra coisa. O gosto é maior que a dor.
MC - Pensei que tudo pra você fosse uma aventura.
DP - Ir às compras não é. Andar por aí por Lisboa, já não é. Mas vou-te contar um segredo. Fui naquela galeria dos Olivais. Fui uns dias depois...
MC - Sua bandida!
DP - ...estava lá uma senhora a cuidar.
MC - Como era ela?
DP - Uma magriça.
MC - A Margarida.
DP - Quem?
MC - Margarida Dimas. Ela e a Maria João foram impecáveis.
DP - Estava bonita a exposição. Foi giro ver tantas donas petas juntas. Cada uma de um jeito. Fiquei emocionada.
MC - Não vai dizer que também foi na de Avignon?
DP - Claro que não e tu sabes disso. Mas, na próxima, eu irei.
MC - Não acredito.
DP - Vais ver. O café está a demorar.
MC - Tô fazendo muito e botando na garrafa térmica que aí a gente não perde tempo.
DP - Merda! Vamos lá com isso. Peguei o navio e vim pra Portugal.
MC - Como?
DP - Ah! É mesmo. A Teresa perguntou-me - estávamos na Vista Chinesa - se eu não gostava de voltar pra Terra. Ela pagaria a passagem. Ela queria que eu ficasse e ajudar-me-ia enquanto pudesse mas tinha medo que fosse por pouco tempo pois já estava desenganada pelos médicos. Eu aceitei e vim pra Portugal. Fui direito procurar os meus pais. Não encontrei nem a quinta. (...)[6] Tudo mudado. Sem conhecer ninguém. O dinheiro que tinha dava para uns dez dias na pensão. Não vi outra saída. Estou a mentir. Não foi bem assim. Foi a saída que vi mais fácil. Fui fazer o “trottoir”. Meu Deus, porra! Lembro-me como se fosse ontem. Passou uma mulher por mim e disse: ”Põe-te a pau! Se a bófia pega-te aí, vais dentro num instante”. Fui para o Intendente. Tem piada o nome da rua. Rua dos Anjos. (...) Vida de puta. Sozinha. Sempre recusei macron. Dureza. Com ou sem chulo é a mesma merda. Eu sempre achei que as outras mulheres, as donas de casa têm inveja das prostitutas. Se assim é, é tolice. Talvez elas pensem que as putas são mais livres ou gozam melhor o sexo. Nada disso. Fiquei pouco tempo na vida. Eu gostava tanto que não dava pra fazer por obrigação. Para estar bem tinha que encarar como profissão. A função a fazer e pronto. Eu, não. Queria prazer. Mas tive prazer também. E nem foi de cama. Uma tarde, procurou-me um rapazola. Estudante. Fez sinal. Eu subi pró quarto. Ele atrás. Trancou a porta. Assustado. Olhou pra fora e fechou a janela. Sentou-se na cama. Os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos no rosto. Ficou muito tempo assim até que falou: “Vou-te recompensar bem, mas preciso dormir hoje aqui. Dinheiro não é problema.” Deu-me umas notas. Era boa paga. E disse que daria mais e eu não precisava fazer nada. Fiquei com um pouco de medo, mas cheia de curiosidade. Um rapaz tão novo. Tão bem apessoado. Ele deitou e dormiu como uma pedra. Comprei pão, leite, frutas e prepare-lhe o pequeno almoço. Resumindo. Ficou três dias comigo. E ia ter comigo sempre que podia. Tornei-me sua confidente. Coitado. Vivia um conflito terrível. Estava metido no Movimento Estudantil e a PIDE andava atrás dele. Ele não sabia bem se era isso que queria mas uma coisa era certa, não queria chibar os companheiros. Chorava o coitado. A família era gente bem e mandou-o para o estrangeiro. Ah! Que menino! Levava-me panfletos, livros, mas eu não lia, o que ele falava, bastava-me. Hoje, tornou-se um figurão. De vez em quando, vejo-o na televisão. Mas sempre que o vejo, não vejo aquele senhor tão seguro de si como são os políticos. Vejo o rapazola temeroso que, mesmo sem saber, ajudou-me a tomar a decisão de largar a prostituição.[7] Arranjei emprego numa cassa de família. Lavar, engomar, cozinhar... Uma folga por semana. Tinha o meu quartinho... e comida e até um salário, muito mirrado. Foi então que eu conheci o... António ... vou chamar-lhe António. Sempre gostei desse nome. Ele não era António, não mas faz-se de conta. António ,(Ri) ele detestava esse nome. Pois o António era um rufia. Mas o coração da gente é traiçoeiro. E, pela primeira vez, ou melhor, a única vez, senti por um homem o que nunca tinha sentido por outro. Algo assim como só tinha sentido pela Teresa e pela Marina. Claro que com alguma coisa a mais. E a coisa descambou para paixão. Saí da casa em que trabalhava e fomos morar juntos. Nessa mesma casinha da Mouraria em que tu me conheceste. Nela fiz o meu mundinho por trinta e tal anos. Mundo feito de amor e muito sofrimento. E o pior, sofrimento de amor. Conheces uma cantiga que diz assim (Cantarola) “Quem eu quero não me quer. Quem me quer, mandei embora”?...
MC - ...”E por isso eu não sei o que será de mim agora”. É brasileira.
DP - Mané. Mané. Puta que pariu! Pois o aldrabão só queria saber da bola e do bagaço. Fui trabalhar de mulher-a-dias. E como bola e bagaço levam dinheiro, fui ser mulher-a-dias-e-noites. Quantas madrugadas atravessei a engomar. Pilhas de roupa assim, ó! Ele não me ajudava em nada. Sempre na esbórnia. Os amigos das tascas. Outras mulheres. Quando me procurava... deixava o seu cheiro no lençol e levava a minha féria... um pouco de encanto e muito de dinheiro. Às vezes eu escondia as minhas coroas, mas era pior. Ele quebrava tudo até encontrar. Até me dava porrada. Não sei , mas acredito que ele gostasse pelo menos um poucochinho de mim. Tanto amor que eu sentia por ele, seria impossível que ele não tivesse algum carinho sincero para com a minha pessoa. Eu tinha tão pouco e dava-me tanto. Até que um dia, resolvi. “Vou atrás!” E fui. Estava sempre ao pé dele. Diminui o trabalho. Uma ou duas faxinas por dia e lá estava eu na tasca, junto com seus amigos. Um dia até fui a bola. Então me vi apanhada...quando dei por mim, percebi que não podia passar sem a bebida. Já pela manhã, nem que fosse só uma ginjinha eu tinha que beber, se não, não conseguia fazer nada. E sabes como me apercebi disso? Quando engravidei. O período faltou e eu achei que era por causa da bebida. Foi uma semana em que fique toda em casa só a beber. A Laura, que Deus a tenha, uma vizinha que era assim como que o serviço de urgências da Mouraria, bastou olhar na minha cara pra dizer “você está grávida. É melhor fazer logo um desmancho porque do jeito que você vai...”Não sei bem o que senti. Essa coisa de fazer e desfazer, ao mesmo tempo, deixou-me passada. Quando ia inteirar os três meses, tive uma briga em casa e perdi a criança. Coisa estranha. Todo o carinho que era para eu ter tido com a barriga, e nem sabia se tinha, passou para o pai. E ele aproveitou-se disso.. Como eu não tinha tanto serviço como antes, o dinheiro já não dava pra boémia. Ele então, pediu-me que voltasse pra vida.
MC - Você falava pra ele da sua vida passada?
DP - Não! Nem do outro, nem nada... ele soube... ainda não contei isso? Foi logo assim que a gente se juntou. Um colega de copos falou pra ele que tinha me visto no meretrício. O homem ficou uma fera. Mas a zanga passou-se. Agora, a zanga era porque eu recusava o seu pedido. Para teres uma ideia, ele ficou mais zangado do que quando soube que eu tinha sido puta. Que grande peta. Zangado que até fez greve. A mulher quando chega a certa idade, só com dinheiro, ou pagando ou recebendo. Eu já não tinha pra pagar e não queria receber. Restavam-me as ginjas. Guardo uma garrafa até hoje.. Era uma caixa que ele tinha ganho numa aposta. Foi uma coisa simpática dele para comigo. Ele não gostava de bebida doce. Só do bagacinho. Mas apostou uma caixa de ginjas por minha causa. Pois como ia a dizer, restavam-me as ginjinhas. A zanga durou até ao dia em que a Selecção Portuguesa conseguiu a classificação para a Copa do Mundo, na Inglaterra. Ele entrou em casa a gritar “Portugal, Portugal!” Parecia um gaiato. Agarrou-me pelo braço e disse: “Vamos comemorar!” Eu não tinha nem um tostão. E ele: “Hoje todo mundo paga pra todo mundo. Hoje eu até bebo Ginja.” Pegou uma garrafa pra ele e outra pra mim. Tomamos uma carraspana que dormimos os dois agarrados na Rua das Farinhas.. Nunca mais bebi! No outro dia fiz aquele desenho com o jornal ‘A Bola’. Por falar nisso, que paciência teve aquele seu amigo, o Morgadinho, pra pintar aquele desenho. Ele fez letrinha por letrinha do jornal. Ele já vendeu? Aquele vai vender logo. Meu Deus, porra! Fora a única alegria que eu sentira por ser portuguesa e, caraças, logo vinda do Futebol. E que inferno foi no ano seguinte com a história do Mundial. Que raiva. Eu que, nessa altura , já não bebia, enfurnava-me no trabalho. Mané, vou-te contar uma coisa que jamais contei a ninguém. Ele passou-me uma doença de rua. A Laura preparou-me uma garrafada. Ela sabia tudo dessas coisas. Na mezinha tinha álcool. Meu Deus, porra! Que sofrimento que foi a minha luta pra não voltar a beber. Não gosto nem de lembrar. E eu perdoei o malandro. A vida foi assim a passar. Veio os dez anos da morte da amiga Marina. Nessa altura, ela estaria saindo em liberdade. Que é que eu fiz?! Comprei umas tintas. À óleo. Uma tela e pintei , de memória o tal pássaro de fogo que ela dizia ser eu. Pintei toda a noite. Pela manhã, estava com o corpo todo cheio de borbulhas. Fui pro São José. Foi feia a coisa. A própria Laura aconselho-me a ir às urgências que para aquilo ela não tinha mezinhas. Coçava, ardia, sei lá eu. Deixei o quadro num canto, ainda por acabar. Um dia, chego a casa, cadê o quadro?! O sem vergonha vendeu-o na Feira da Ladra. Voltou a casa com duas garrafas de bagaço. Todo animado a dizer que foi só chegar à Ladra e vender. Não disse por quanto. Se calhar, trocou-o pelas garrafas. Começou a infernizar-me para eu passar a fazer pinturas daquelas que a gente ia-se encher de massa. Que aquilo sim é era bonito e não “esses homenzinhos carecas que tu fazes”. Vê só, homenzinhos carecas! Então, ele nunca reparou que era uma mulher?! Para tu veres. Teve a lata de ameaçar-me. Que se eu não fizesse isso que ele iria para a França. Eu disse-lhe que pelo que bem sabia, os que iam para a França, iam para trabalhar e isso não lhe dava jeito nenhum. E ele veio com a conversa de que lá era tudo a carregar nos botões, que não era como cá que se tem que pegar no pesado. Não liguei para a ameaça. Deitei fora as tintas. Ele ameaçou pra aí umas três vezes até que se foi mesmo. Era o ano de 1972. Foi quando tentei fazer a maior tolice da minha vida. Lancei mão a um frasco de comprimidos e comecei a tomar. Um por um. Tinha uma garrafa de bagaço que ele havia deixado pela metade. Eu engolia um comprimido e deitava um pouco para o chão. Não bebia. Deitava para o chão. Outro comprimido, outro gole pró chão. Outro. Mais outro. Comecei a ficar tonta. A ver umas luzes a minha frente. As luzes dançavam. Vi um gato enorme. Todo colorido. Meus pés começaram a dar a impressão que se estavam a enterrar no chão. Olhei prós pés e eram como raízes a agarrarem-se à terra. Todo o meu corpo era como se fosse o tronco de uma planta. Os braços eram galhos com folhas. Da cabeça explodia assim flores de todas as cores. Assim me vi. Tão bonita. Atirei longe o frasco. Mais uma vez a Dona Laura da Mouraria e suas mezinhas... a Laura. Morreu já faz uns oito anos. Salvou-me a vida. Nem precisei ir ao São José. Fiz o desenho da flor em que me vi. Agora, lindo mesmo é a pintura que a Edna de Araraquara fez. Com aquelas casinhas nas nuvens... Ai!
MC - Esse já é meu!
DP - Mas, Mané, cento e vinte contos não te foi muito caro?
MC - Quer dizer, foi caro pra mim, que preciso vender uns dez desenhos do Mané pra fazer essa quantia e, nessa altura eu não estava a produzir. Mas eu sempre quis ter um quadro da Edna e você precisava dum espaço maior pra poder pintar...
DP - Deu pra pagar quatro meses de renda da garagem.
MC - ...e pra quem já estava falido mesmo, cento e vinte contos a mais ou a menos não faziam...
DP - Vais, novamente deitar-me as culpas a cara por tua falência?!
MC - Oh! Dona Peta, nós já discutimos isso. Não é deitar culpas é uma constatação. Eu perdi a loja.[8] Mas foi uma opção. Um investimento. Eu preferi investir na Dona Peta.
DP - E achas que vais ter retorno?
MC - Não sei. É como tudo. É um jogo. O que garante que se eu investisse na loja seria melhor? E, no que depender de mim, Dona Peta estoura. Parte a loiça toda. Vira até filme!
DP - Cinema?
MC - E boto a Kikha pra fazer a Peta. Não, a sério. Se eu fosse bom escritor, eu escrevia uma peça de teatro e eu próprio ia fazer o papel do Mané. Ia ser engraçado. Quem sabe se algum dramaturgo se interesse...
DP - Tu sabes que eu tenho uma história divertida com cinema?
MC - Ah! Você trabalhou com o Manuel de Oliveira, não foi?
DP - Não. Eu torci o pé. Eles faziam a filmagem nas escadinhas de São Cristóvão. Eu gostava de conversar com o pessoal. Malta jovem. Simpáticos. Perguntaram-me se eu queria participar e eu aceitei. Era o filme dum ceguinho...
MC - A Caixa.
DP - Eu tinha só que subir e descer escadas junto com um monte de gente. Ia fazer, mas torci o pé. Mas a história que eu quero contar é outra. Eu nunca liguei muito pra cinema. Fui ao cinema uma vez, com a Teresa, quando saí da prisão e nem lembro direito. Vejo os filmes na televisão. Quando o Fellini morreu. Eu nem sabia quem era Fellini. Na televisão era Fellini pra cá, Fellini pra lá e foi anunciada uma semana inteira com filmes do tal Fellini eu, curiosa, vi um. Fui apanhada. Vi todos. Então, tinha um no qual havia uma mulher com um grande cú. Tinha muita piada e era muito bonito. Chorei com a cena de um pavão. Que coisa linda! Não perco um. E sabes o que pensei quando ouvi falar em Fellini? Que era alguma coisa relacionada com gatos. Ena, pá! Como a gente é ignorante, não é Mané? Pena que a televisão passe poucos. Agora, só se ele morresse novamente.
MC - Você vê muito televisão?
DP - Agora, vejo pouco. Tenho que pintar. Novela, a última foi Pantanal. Vejo alguns cómicos. Tem uns bobos mas faz a gente rir. Bem, e só os vejo porque são bobos. Às vezes vejo o Herman.
MC - Acha-o bobo também?
DP - Bobo é quem se ri dele. O Herman José não é pra rir. Ele fala coisas muito sérias. Até nos faz pensar na vida. É isso. O Herman não é pra rir, é pra pensar.
MC - Uau!
DP - Que foi, Mané?
MC - Por essa eu não esperava. Nada, nada! Dona Peta. É que eu rio com o Herman e não acho que sou bobo por causa disso.
DP - Então, é porque não pensas.
MC - Dona Peta, vamos voltar a falar de você. Vá lá.
DP - Onde é que nós estávamos?
MC - Também estou perdido. Espera aí. Vamos voltar um pouco a fita pra ver...Ah! Já sei. Falava da tolice que ia fazendo.
DP - Grande tolice. Bem, um ano depois recebi uma carta dele, de França. Mas eu já tinha tomado muito gosto pela vida. Viver é uma dádiva. E sabes que mais, Mané? Eu penso. Se a morte faz parte da vida. Há que se morrer bem mas, só sabe morrer quem sabe viver. E eu já tinha tomado gosto pela vida. Fiz um desenho. Deitei fora a carta. E nunca mais arranjei ninguém. E o gosto que sentia pela vida, procurei passar nem que fosse um poucochinho para os outros. Daí, dei na menina (...) que a vizinhança tanto gosta. Passei a ajudar... a interessar-me pelos problemas alheios. Na Mouraria, Mané, nunca deixei um vizinho sem um raminho de salsa. Uma carta. Nessa altura, o que aconteceu em Aveiro mexeu mais comigo que qualquer carta que viesse de França. Passei a ver as coisas por outro lado. O outro lado das coisas. Comecei a ver um Portugal feio mas sabia que ia mudar. E mudou. Como eu mudei. Entrei na menopausa junto com meu país. Nós dois paramos de sangrar ao mesmo tempo. Peguei essa mania de fazer tricot. Cuidar dos gatos da vizinhança. E assim fui passando o tempo. A trabalhar. A pagar a Caixa. O que me dá essa reforma. Minguada mas que dá pra comer. Ajudar as pessoas. Ajudei muita gente com problemas de álcool que, aliás, é um problema de todos nós. Uma pena que não consegui fazer com que o Fernando, aquele que tu conheceste, deixasse a bebida. O Fernandinho. Tão bom menino. A bebida matou-o já lá vão dois anos.
MC - Também gostava dele. Fiz um desenho a partir de uma foto que tirei dele. Ele fazendo uma reverência. Muito engraçado. Eu sempre dava uma gorjeta pra ele quando ele me ajudava a pegar madeira lá na estância.
DP - Toda gente na Mouraria gostava dele. Às vezes ele se magoava. A bebedeira. Eu cuidava dele. Certo dia, bateu a cabeça na pedra da rua. Ficou três dias em minha casa. Eu tinha tanto carinho por ele. Como filho, viste, senhor Mané, não vá pensar sacanagem...
MC - Não pensei nada.
DP - Se eu não te conhecesse... Claro que eu tirava um côco...
MC - Como é!?
DP - Côco! É como dizia a Nordestina...é se aproveitar da situação. Juntar o útil ao agradável. Percebes?
MC - Tirar uma casquinha...
DP - A Nordestina, às vezes armava uma confusão e fazia cenas só pra tirar côco quando os guardas agarravam-na. Quando era o sargento Amândio então que ela esfregava-se toda.
MC - Então, quer dizer que a senhora tirava uma casquinha no Fernando?...
DP - Mas como filho!
MC - E o sacana aqui sou eu!
DP - Mas não é assim? Toda mãe não se aproveita um pouco do filho? Eu nunca fui mãe mas vejo que é assim mesmo. E foi-se o Fernandinho, meu filho. Senti-me tão só. Só, com os gatos. Quer dizer os gatos vadios ou de algum vizinho. Sabes, Mané, eu nunca tive um gato. É sempre vadio ou que foge do vizinho. Foi aí que tentei aquele programa da televisão. O Ponto de Encontro. Queria ver se descobria algum descendente dos meus pais. Em vão. Nem sei se seria...Não sei o que sentiria. Bem, assim ia eu a levar a minha vidinha, até que tu me apareceste. E cá estou, numa garagem a pintar os meus desenhos. Já te contei como quero a exposição? Vou escolher o desenho que mais gosto de cada ano. Será um quadro pra cada ano que os desenhos ficaram na gaveta.
MC - Vai sair caro.
DP - Problema teu! Tu que me meteste...
MC - Deixe estar, Dona Peta. Não faltarei mais consigo, não. Além do mais, tem mais gente a ajudar. A Sr.ª Jerónima, da Casa Ferreira diz que vai arranjar algum material e sempre faz um desconto. A Servmoldura também vai dar material. A Luiza Caetano deu-me a Peta que ela fez. O Zé Cordeiro também. Tenho aquele que a Edna lhe deu e eu comprei. Posso vendê-los. Ou então... Taí! Vou fazer uma exposição dos cafés só pra comprar material. Troco desenhos por tinta. É isso. Melhor, que assim, salvaguardo os quadros dos amigos que gosto muito. Agora, Dona Peta, eu... eu queria dizer-lhe que... bem, a gente nunca sabe onde as coisas param... e...
DP - Mané. Esteja tranquilo. Isso tudo... é só uma aventura, meu filho.
MC - Só!? Oh! Dona Peta. Obrigado. Deixa eu dar um abraço.
DP - Anda cá, Mané. Dou-te um beijinho também. Ó! Não fica assim. Deixa as coisas acontecerem e vamos ver onde vão dar. Não chora. Vamos tomar um café.
MC - E depois?
DP - Depois, o quê?
MC - Depois da exposição. O que pretende fazer?
DP - Aí, meu filho. Vou aprender a pintar.(Ri) Pintar como deve ser. Mas por prazer. Sem me preocupar em vender ou expor. Pintar tudo como gostaria a amiga Marina. Acho que vou frequentar as aulas do Zé Cordeiro. Ri-te, ri-te! Tenho que saber lidar com as tintas. Não fazer mais asneiras como aquela de querer misturar óleo com acrílico.
MC - E você se apresentaria ao Zé como sendo a Dona Peta?
DP - És parvo ou o quê!? Se calhar, sou capaz de me apresentar como brasileira pra ver se consigo um desconto. Sabes que ainda tenho os documentos que usei pra ir pra Argentina? Mais café. Pra já agora, Mané, gostava que me ajudasse a por preços nos quadros.
MC - Ih! Sou ruim de preço.
DP - Mas tu vives disso há tanto tempo!
MC - Trabalho pra caramba. Se eu fosse bom de preço, trabalhava menos.
DP - Dás-me só uma mãozinha. Eu pensei... como eram os preços da exposição da França?
MC - Os mais baratos... Ah! Fica difícil você se basear por aquela. Os preços variavam muito assim como os participantes. Vejamos. Tinha gente já famosa como o Mário Alberto mas que pôs o preço pela metade quando soube que a senhora não queria nada do dinheiro. Ou o Renato Rodyner que preferiu oferecer o dele ao Sr. Rodrigues Vaz, seu amigo. Tinha gente que estava começando como a Alessandra Cerdeira que fazia sua primeira exposição. A Marie M. que era a primeira vez que pegava no pincel como eu que nem criei nada, limitei-me a passar pra tela seu desenho.
DP - Quanto foi o teu?
MC - A Monique pagou oitenta contos por ele. O Yves vendeu o dele pro senhor Robles por noventa e cinco. E ele é escultor... A maioria participou só pela graça da coisa.
DP - Por que a gente não faz uma média?
MC - Boa!
DP - Quanto dá?
MC - Deixa ver. O mais barato, 50. 350. Será que estou certo? 350 menos 50. 300. Dividido pela metade. 150 contos.
DP - É justo! Só vou mesmo fazer quarenta e três quadros da Dona Peta... 150 contos cada. Está bom. Ah! Menos os feitos à óleo, os cinco do tempo da cadeia e o Malmequer e o do Botero. Por esses sete, quero mil. Por menos eu não vendo. O que eu fizer com óleo… mil.
MC - Mil e duzentos. O ‘negro’ também tem que ganhar algum. Ou entra nos meus trinta por cento?
DP - Só quero mil. E pronto, ficamos assim. Porra! Mil contos. Bastava um e já ia conhecer a Amazónia. Sete, e já estava com uma casa maior. Outro dia vi uma por seis mil e quinhentos contos com quintal e tudo. Três assoalhadas. Agora, uma coisa que tu não podes esquecer, Mané. E se tu não fizeres, vou ficar deveras aborrecida contigo. Tu tens os teus trinta por cento que nós acordamos. Mas há que dar algum para a Etelvina, do balneário. A vida está-lhe difícil. Ela não tem podido trabalhar depois da doença.
MC - Eu sei. Ouvi dizer que o Fernando Maurício está organizando um show pra ajudá-la. Vamos tirar 5%, tá bom?
DP - Dez. Cinco meus, cinco teus. Tu também és amigo dela.
MC - Demais. Tem piada que muita gente acha que ela seja a Dona Peta.
DP - Mas... se não vender nada , ela não ganha nada. Esqueça a porcentagem. Vou separar um quadro pra ela. Se não vender, ela ganha o quadro. Se vender, ela leva o dinheiro todo.
MC - Melhor. Mais café?
DP - Se faz favor. (Rindo) Que parva sou eu!
MC - Que foi?
DP - Casa, o caraças! Vou é ganhar o mundo! Quando eu precisei de uma
casa de verdade eu não tive. Agora que estou velha, que me basta um canto qualquer, vou querer casa?! Mané, venda tudo que eu vou mas é passear. O que não vender fica pra ti. Dou-tos.
MC - Vira essa boca pra lá, Dona Peta. Com essa saúde! Você ainda vai durar muito. Vai dar pra vendê-los todos e ainda fazer mais.
DP - Nada. Saúde também mata. Eu já enterrei metade da Mouraria e já vi nascer outras tantas. Do meu tempo. Que pra lá fui morar. Restam poucos. A tua senhoria, a menina Isaura. Já deve ter mais de oitenta... Sabes que éramos colegas...
MC - No Intendente? A menina Isaura?!
DP - Ó, parvo! Na lida como mulher a dias. És um sacana. A menina Isaura. Coitada, nunca teve um homem na vida. Coitada nada! A ver melhor as coisas... ela é que foi feliz... Será?! Ah! Gostei da janela lá no alto. Assim ninguém deita os mirones.
MC - Esse meu amigo Robson é um excelente carpinteiro. E sabe que ele não quis levar nada? Eu é que fiz questão de pagar pelo menos o material.
DP - Agradeça muito a ele. O atelier está pronto. Agora, toca a trabalhar. Já não tenho hipótese, pois não? Mas, sabes, Mané? Quando acabar essa agonia. Sabes que a primeira coisa que eu vou fazer é pintar novamente o Pássaro de Fogo...
MC - Esse eu gramava ver.
DP - É lindo. Ainda sonho com ele. Agora, vamos parar, Mané. Desliga essa coisa. Estou cansada!
MC - Tá bem. Mas, Dona Peta, me explica uma coisa. A senhora põe sempre a digital nos quadros. Você não tem medo de... Pois, como se diz na gíria, a senhora já ‘tocou piano’ ou então, o Serviço de Identificação... alguém que queira saber quem é Dona Peta é só...
DP - Pra identificação usei esses dedos. Eu firmo os quadros com esse.(Ri) Posso não ser muito boa da cabeça, mas não sou parva. Basta, Mané!
MC - Só mais uma coisinha!
DP - O que é?!
MC - A Hélène Sage, a francesinha, pensa em escrever um livro sobre sua vida. Um romance.
DP - Isso é lá contigo, Mané. Tu que tratas de tudo com respeito à Dona Peta.
MC - Não é isso. É que a gente, nas conversas... Bem, achamos que o António é uma peça muito importante nessa história. Mais do que parece...
DP - Preciso ir a casa de banho...
MC - Só um instantinho... O poeta Tony Carolas...
DP - ...o fiscal da Mouraria...
MC - ...ele diz que a senhora queria que o gajo que se pirou pra França soubesse que a senhora também estava aparecendo na França, não pra lhe dar com uma ‘luva de pelica’ mas para arranjar um jeito de vocês se encontrarem... Fala a verdade!
DP - Ah! Mas isso já é outro romance. (Ri) Isso é outra ‘peta’!

Lisboa - margem sul do Tejo - 31 de Julho de 1998.





[1] A entrevista não chegou a concretizar-se
[2] Falou durante cerca de meia hora sobre o casamento e a vida no Porto. Fez os cortes muito surpreendida por ter-se lembrado de tantos detalhes
[3] Dona Peta aceitou a exposição em França com a condição de que fosse publicada uma nota junto com a foto de um desenho no jornal “A Bola”.

[4] Nome pelo qual é conhecida na Mouraria
[5] Como desculpa para não sair, diz que, ao contrário do que normalmente acontece com as outras pessoas, o seu dedo dói quando o tempo está bom e só para de doer quando chove ou faz frio.

[6] Corte no nome da quinta e de vizinhos de outra quintas
[7] Em nenhum momento ela disse o nome do político.
[8] Galeria YR, em Alfama. Em sociedade com Luis Morgadinho e Yves Robles